sábado, 24 de julho de 2021

Eu, o doutor

 

Eu, o doutor

Entrei uma tarde numa camisaria de onde gastava, com o fim imaginado de comprar uma gravata. O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia, cumprimentou-me alegremente:

         “Boa tarde, senhor doutor.”

         “Não sou doutor”, disse-lhe, e era verdade. “Por que é que me julga doutor?”

         “Ah, eu realmente julgava...”, respondeu ele limpidamente.

         Pedi gravatas, escolhi a que preferi, paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que também de há muito me conhecia, veio para o pé do colega.

         “Boa tarde”, disse eu para ambos.

         Os dois caixeiros inclinaram-se amáveis e sincrônicos, e, como um só, dissera,:

         “Boa tarde, senhor doutor, e muito obrigado.”

 

Moralidade:

Quando a opinião nos faz doutores, doutores temos que ser. Na vida social, somos o que os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do domínio do mundo. Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.

 

Fernando Pessoa 31/1/1932