Eu, o doutor
Entrei
uma tarde numa camisaria de onde gastava, com o fim imaginado de comprar uma
gravata. O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia,
cumprimentou-me alegremente:
“Boa tarde, senhor doutor.”
“Não sou doutor”, disse-lhe, e era
verdade. “Por que é que me julga doutor?”
“Ah, eu realmente julgava...”,
respondeu ele limpidamente.
Pedi gravatas, escolhi a que preferi,
paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que também de há muito me conhecia, veio
para o pé do colega.
“Boa tarde”, disse eu para ambos.
Os dois caixeiros inclinaram-se amáveis
e sincrônicos, e, como um só, dissera,:
“Boa tarde, senhor doutor, e muito
obrigado.”
Moralidade:
Quando
a opinião nos faz doutores, doutores temos que ser. Na vida social, somos o que
os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade
social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada
tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do domínio do mundo.
Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.
Fernando
Pessoa 31/1/1932